quarta-feira, 14 de maio de 2014

A primeira vítima do conflito ucraniano

(Fernando Padovani)

Um novo front de batalha atrai a atenção nos debates estratégicos desenvolvidos nas chancelarias e nos comandos militares da política internacional. Trata-se da batalha das versões sobre o conflito ucraniano. No meio desta disputa se encontram alguns dos principais jornais e cadeias de televisão do mundo.

Este campo de guerra não é tão novo assim, pois já havia sido deflagrado bem antes do início das confrontações de rua em Kiev, no final de 2013. O velho adágio da política internacional parece se confirmar mais uma vez, ao antever que nas guerras a primeira vítima é sempre a verdade. Entretanto, uma nova ofensiva foi aberta neste mês de maio de 2014, capitaneada pelo secretário de estado americano John Kerry.


O chanceler americano atacou em pronunciamento oficial a rede de TV estatal russa RT, acusando a rede russa de ser um instrumento de propaganda russa, “uma máquina de distorcer informações”, promovendo uma verdadeira campanha de desinformação e repercutindo apenas a “o mundo de fantasia” em que Putin viveria, falseando abertamente o que está acontecendo na Ucrânia.

O pronunciamento oficial do secretário de Estado, entretanto, acabou colocando em evidência a questão da cobertura jornalística sobre a política internacional em geral e sobre a crise da Ucrânia, em particular, e também para a “guerra de informações” que está sendo travada através da mídia.

O pronunciamento de John Kerry aconteceu na mesma semana em que o jornal americano “The New York Times” publicou, em matéria de primeira página, assinada por David Herszenhorn e intitulada “Russia is quick to bend truth about Ukraine” acusando o governo russo de orquestrar uma grande campanha de propaganda e de desinformação.

Segundo o jornal, esta campanha russa de desinformação poderia ser exemplificada, segundo o NYT, pela campanha promovida pelo primeiro-ministro Medvedev, repercutida amplamente pela tevê russa RT, defendendo que o golpe que depôs o presidente Yanukovitch teria sido resultado de uma articulação entre a CIA e grupos neonazistas ultra nacionalistas ucranianos, por ocasião de uma visita secreta a Kiev feita pelo próprio diretor agência americana de espionagem, John Brennan, para encontrar os líderes no movimento.

Outros elementos da alegada campanha russa de desinformação seriam, segundo a matéria do NYT, a constante divulgação do perfil neonazista do novo governo instalado em Kiev, afirmação classificada como nonsense pelo colunista do NYT Nicholas Kristof. Outro exemplo seria a afirmação de que o governo americano teria gasto US$ 5 bilhões na desestabilização do governo de Yanukovitch, e ainda a disseminação da ideia de que a maioria das mortes ocorridas nos confrontos do Euromaidan teriam sido perpetradas pelos próprios rebeldes, com o objetivo de selar a sustentação política do governo de Yanukovitch.

O que é curioso na matéria do NYT, repercutida em discurso oficial do secretário de Estado americano, é que o jornal não desmente Medvedev e a RT, omitindo-se de esclarecer aos leitores que essa visita do diretor da CIA aos líderes rebeldes realmente ocorreu em Kiev.

Da mesma maneira, as insistentes alegações de que o novo governo ucraniano possua fortes tendências neonazistas, classificada pela matéria do NYT como uma campanha de propaganda perpetrada pelo governo russo e pela Russia Television, têm sido confirmada pela cobertura de outros jornais europeus, como o “The Guardian”, o “Le Monde” ou o “El País”, e ao mesmo tempo minimizadas por alguns jornais americanos, como “The Washington Post” e o próprio NYT, enfatizando exclusivamente o legítimo caráter popular e democrático das manifestações.

Segundo a cobertura dos jornais europeus, pode-se dizer que reconhecido a papel exercido pelas milícias neonazistasna organização e condução dos movimentos do Euromaidan, tais como “Right Sector” (Prava Sektor) e Partido da Liberdade (Svoboda Party), este inspirado no “mártir” e líder colaboracionista nazista Stepan Bandera. Também é pública a atribuição de quatro ministérios do novo governo provisório a representantes destes grupos, sendo que o chefia nacional de segurança foi atribuída a Andry Paruby, o “líder militar” das manifestações do Euromaidan, fundador do Partido Social Nacionalista Ucraniano.

No que se refere ao terceiro indicador da alegada campanha de propaganda patrocinada pelo governo russo e sua TV estatal, a reiteração de que as manifestações de rua em Kiev teriam sido financiadas diretamente pelo governo americano, a matéria do NYT também não faz referência ao fato de que esta informação foi divulgada pela própria Secretaria de Estado dos EUA, através de sua assistente para assuntos europeus, Victoria Nuland, em discurso público para políticos, empresários ucranianos e investidores americanos, em 13 de dezembro de 2013. A quantia investida pelo governo americano teria sido destinada, nas palavras da assessora, "para financiar os meios necessário para que o povo ucraniano possa realizar as suas aspirações europeias”.

Finalmente, o quarto elemento citado pela matéria do “New York Times” como prova da existência de uma campanha de desinformação russa, referente ao envolvimento das próprias forças rebeldes nas mortes de manifestantes, o NYT também não relativiza as versões em disputa ao não citar o vazamento do telefonema entre o chanceler estoniano Urmas Paet e a chefe da diplomacia da União Europeia, Catherine Ashton, onde se discute a autoria dos assassinatos, como reportou o “The Guardan”.

Ou seja, em nenhum dos indícios classificados pelo NYT como tentativas de desinformação do governo russo foram produzidos pelo governo russo, mas apenas reproduzidos a partir de fontes de domínio público. Apesar disso, o NYT não desmente a informações veiculadas pela RT nem menciona a existência de outras fontes além do governo russo.

Ao contrário, nota-se um grande alinhamento entre os principais meios de comunicação americanos e as posições da secretaria de Estado americana, caracterizadas por uma forte postura anti-russa e de demonização de Putin, como no caso da Fox News, NBC, “The Washington Post” e, especialmente, “The New York Times”. O NYT é o terceiro maior jornal americano e aquele com maior cobertura internacional, e também o jornal com maior alinhamento com os discursos da Secretaria de Estado, como sugerem a linha editorial do jornal durante a Guerra do Iraque, a crise síria e durante a atual crise da Ucrânia.

De modo geral, os maiores veículos americanos consensualmente reproduzem a visão do Departamento de Estado, como a tese do "expansionismo russo", combinada com uma imagem demonizada de Putin, e seu papel de único desestabilizador da política interna ucraniana O Times de Nova York chegou a publicar matéria de capa com fotos de soldados russos dentro do território ucraniano, noticiando uma agressão militar russa. Entretanto, a versão foi desmentida dois dias depois, ao se constatar que as forças russas estavam em território russo.

Um alinhamento de versões que se torna mais evidente ao compararmos com as linhas editoriais mais independentes dos principais meios europeus, como “The Guardian”, “Le Monde” e “El País”, e ainda mais se comparado com a linha de cadeias emergentes, tais como CCTV (China TV), Al-Jazeera e, claro, Russia TV, todas elas mais críticas em relação à política externa americana.

É através dessa analise comparativa de linhas editoriais que se evidencia, na cobertura dos meios americanos, o grande espaço concedido a apenas um lado das versões, suprimindo possíveis questionamentos e discursos alternativos. Em se tratando de empresas privadas de comunicação com independência formal em relação aos governos, as explicações para esse grande alinhamento de opiniões entre órgãos de imprensa e governo podem estar ligadas à várias hipóteses. A primeira delas seria a sobrevivência do clima de “patriotismo” unipolar na opinião pública americana, instalado após 11 de setembro de 2001, ou ainda a uma certa acomodação do setor, diante da facilidade de reproduzir os comunicados de imprensa emitidos pelas assessorias do governo americano, especialmente pelo departamento de “diplomacia pública” da Secretaria de Estado. Também é possível se pensar da tradicional teoria da "espiral do silêncio", dinâmica que muitas vezes se confirma em situações envolvendo grandes veículos de massa. Mais consensuais seriam as linhas editoriais, maior a audiência potencial, o que acabaria revertendo sobre a dinâmica de formação da opinião pública, onde as visões alternativas seriam paulatinamente constrangidas ao consenso.
 

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