quinta-feira, 25 de junho de 2015

Nacionalismo historiográfico africano revisitado

(Pilar Vasconcelos)

“O regionalismo historiográfico foi um dos
principais erros cometidos pelos historiadores
nacionalistas na África, pois passaram a
considerar as tradições orais como equivalentes
ou complementares aos documentos escritos.
Essas tradições orais veiculam antes de tudo um
discurso histórico que é manipulado, em função
das necessidades das sociedades atuais, o que
explica a importância dos silêncios que o balizam”.
(Boubacar Barry)

No debate historiográfico africano, a perspectiva histórica parece evidenciar uma peculiaridade metodológica de uma época: os historiadores nacionalistas talvez tenham exagerado a importância do uso das tradições orais como fontes, considerando as fontes orais como uma oposição autêntica em relação aos documentos escritos oficiais.

O historiador senegalês Boubacar Barry tem concentrado o foco de seu trabalho recente na reavaliação das fontes orais para a construção do discurso histórico africano, lembrando como o movimento de resgate das fontes orais colaborou para a construção do nacionalismo na África ocidental contemporânea.

Esse movimento representou uma ruptura com os trabalhos da primeira geração de historiadores africanos, a dos pioneiros, como o Anta Diop, que buscam romper com a abordagem vigente na História da África até então feita por historiadores europeus. Essa primeira geração de historiadores africanos defendia que o continente africano possuía uma história própria, e para isso apostava no recurso a fontes escritas antigas não-europeias. Anta Diop, por exemplo, buscava traçar uma ligação entre escritas egípcias e registros documentais dos impérios medievais africanos, enquanto outros historiadores vão recorrer a fontes escritas árabes.

Barry indica que será principalmente a segunda geração dos historiadores profissionais africanos, que se estabelece nos anos 1960 e 70, já no contexto da descolonização, que irá promover uma redescoberta das tradições orais africanas como fontes legítimas da história, tendo em vista o grande aumento do interesse pela história pré-colonial da África ocidental.

Essa “nova história”, vai glorificar a si mesma ao mesmo tempo em que culpa o Ocidente pelos silêncios históricos, fazendo nascer diversos trabalhos de historiadores profissionais que se utilizam amplamente das fontes orais, em complemento com as fontes escritas africanas e europeias. A primeira obra que se utiliza exclusivamente das tradições orais foi "Sundjata, ou l’épopée mandingue", de Djibril Tamsir Niane, de 1960. Para Niane, que reabilita a figura do “griot”, defende para este uma posição de direito na história africana, como um depositário tradicional do passado. Em função da obra "Sundjata”, que se torna um clássico, as tradições orais passam a ter doravante direitos iguais aos documentos escritos.

Essa mutação de mentalidades parece transformar progressivamente o método e a abordagem dos historiadores africanos que se dedicam à construção da história africana. Em toda parte, na Senegâmbia como em outros lugares da África, se disseminam as metodologias de coleta, transcrição e interpretação das tradições orais. A metodologia sobre as tradições orais incita ao uso dessa fonte para reconstituir aspectos inteiros da história do continente.

Na região da Senegâmbia, a escola de Dakar vai usufruir de vantagem e papel essenciais para a reconstrução desse passado, uma vez que detém do conhecimento das línguas africanas e dão continuidade a uma ancestral tradição social de preocupação com a produção de história, elementos que vão se constituir na peça-chave para o acesso aos depositários da tradição oral.

Em consequência aos trabalhos dessa segunda geração, a escola de Dakar, por exemplo, vai criar junto com outros historiados de Abidjan e Camarões, no ano de 1972, uma proposta de história que privilegia a o papel ativo dos africanos na descolonização, ou seja, uma narrativa histórica que privilegia a história das sociedades africanas como motor da sua própria história. A história constitui-se assim, segundo Ki-Zerbo, na alavanca para construção de uma consciência nacional e, portanto, para a realização de uma unidade africana controlada pelos próprios africanos.

A partir daí, como lembra Barry, a ideologia nacionalista, que antes tinha como referência o passado glorioso da África, agora vai ser substituída por uma ideologia nacional oficial, de partido único, ou até mesmo de um partido-Estado. Essas novas expressões não levam em conta, por exemplo, as contradições das exóticas fronteiras nacionais herdadas da colonização que, mesmo não levando em consideração as continuidades étnicas e culturais das populações locais, acabam mesmo assim, numa continuidade das instituições coloniais, servindo de referência para a construção das narrativas de identidade nacional dos governos independentes.

As tradições orais nesse momento (anos 1970) ficam em alta, sendo exaltadas em rádio e transmitindo em profusão as narrativas dos “griots”, cujo papel de detentores da memória e das tradições coletivas é reabilitado. As novas fontes orais parecem privilegiar as tradições dinásticas e o elogio de heróis nacionais, exaltando as virtudes dos pais fundadores das novas nações independentes. Entretanto, no mesmo sentido, também contraditório, mesmo para a construção da história africana recente, algumas tradições orais ou crônicas escritas acabam mesmo por ocultar a presença e as ações francesas na conquista colonial, como lembra Barry.

O grande objetivo então parecia ser mesmo o de exaltar a figura do herói nacional para responder às necessidades do momento nessa fase da descolonização, que era a de construção de uma identidade nacional. Barry explicita que há neste momento, sem dúvida, uma simbiose entre o discurso histórico dos trabalhos de historiadores profissionais africanos e os discursos das tradições orais.

Assim, gradualmente países da África Ocidental, como o Senegal, vão desenvolver com mais ou menos intensidade, uma história nacional cuja a marca é a ruptura com o passado colonial, se apoiando nos valores africanos veiculados às tradições africanas.

Barry aponta, no entanto, que foi um erro dos historiadores se utilizarem de fontes orais como equivalente ou complementares às fontes escritas, pois as primeiras devem passar por um tratamento crítico assim como as segundas. Demonstra que o discurso histórico veiculado às tradições orais é manipulado em função das necessidades da sociedade por seus detentores, o que explica a importância do silêncio que o balizam. Apresenta assim, dentro desse contexto, que o silêncio mais pesado recaiu sobre a participação dos africanos no tráfico negreiro, que durou diversos séculos e teve um impacto de longa duração sobre as sociedades senegambianas.

Essas tradições orais literalmente ignoram o tráfico negreiro que foi reconstituído a partir dos arquivos e das relações dos viajantes europeus. Dessa forma, a África, pátria-mãe, aponta Barry, torna-se alvo de milhões de escravos que querem lembrar para sobreviver em numa sociedade cujo o racismo se constitui como fundamento da servidão.

Mamadou Diouf, em “L' Histoire du Kajoor au XIX siécle” põe em evidência a necessidade de tratar as tradições orais como um discurso histórico na mesma categoria que as obras acadêmicas de historiadores profissionais, que se utilizam apenas de documentos escritos. A manipulação das tradições orais leva em conta as preocupações das populações que fazem uma releitura de sua história, conforme a necessidade do momento.

A partir da conclusão de Barry pode-se evidenciar o erro dos historiadores no recurso às tradições orais. O autor aponta que durante anos os historiadores privilegiaram em seu trabalho a coleta e o uso das tradições orais, deixando de lado a reflexão acerca de suas funções dentro de uma sociedade oral. É evidente que as tradições orais, além do testemunho e informações que podem conter, constituem-se como discursos históricos.

As tradições orais em forma de crônicas, epopeias, entre outros, faz permanecer viva na memória coletiva um testemunho de um passado longínquo. Além disso, continuam também a serem produzidas a medida em que vão dando conta de sua aventura presente, pois como já dito, são antes de tudo, discursos históricos.

Dessa forma, nas sociedades orais, a função da memória é mais desenvolvida, da mesma forma que a ligação entre o homem e a palavra, de acordo com A. Hampaté Bâ. Segundo essa lógica, a coesão da sociedade reside no valor e respeito pela palavra. Não é apenas a história que depende da palavra, mas todas as instituições africanas repousam sobre a palavra oral, curandeiros, anciãos, todos tem um pacto de preservação das informações, e por isso as sociedades africanas acabam se organizando especialmente para isso.

Nas tradições africanas, a palavra falada possui um valor moral fundamental, um caráter divino vinculado à sua origem divina e às forças ocultas nele depositados. Muitos chegam a acreditar que as tradições orais africanas se limitam então a mitos e lendas mas, definitivamente, não é o caso. A tradição oral faz parte da construção de uma memória coletiva de uma dada sociedade africana, à medida que conduz o homem para a sua totalidade, isto é, cria um tipo de homem particular para esculpir a alma africana.

O silêncio que nela reside, faz parte da lógica de uma construção de uma memória, a partir das necessidades do momento presente, daqueles que detém do poder.

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